Quando eu me mudei pra Paris, eu não fazia ideia do quanto andar (sim essa ação tão básica na vida) ia me levar a lugares e sensações diferentes. Eu sei que Paris é Paris e é óbvio que andar aqui é simplesmente aquela experiência turística que ninguém pode perder. A questão é que as minhas andanças não eram turísticas e sim a andança de uma habitante da cidade, uma verdadeira parisiense.
Pra explicar a surpresa de conseguir andar pela cidade, preciso explicar que venho de uma cidade que foi feita pra não andar a pé. Isso mesmo, Brasília foi feita pra quem tem carro - mesmo nos anos 60 - os transportes públicos não são bons e andar de um canto para o outro sempre foi difícil e longe. Lembro que na maioria das vezes eu pegava o carro pra ir visitar a minha amiga que morava a apenas 5 minutos da minha casa. Tudo parecia ser longe, cansativo e perigoso. Faz parte da cultura brasiliense classe média usar o carro pra tudo - mesmo quando eu nao tinha acesso ao carro, eu pegava um onibus pra nao ter que andar 10 minutos.
Daí eu caí de paraquedas nessa cidade (também perigosa em alguns locais, viu) e descobri que eu podia ir no mercado, no shopping, no cinema, no parque, tudo a pé ou de bicicleta. A cidade enfim era minha. Eu senti que eu fazia parte da cidade. Ela é alcançável, acessível, eu existo nela.
Nos meus primeiros meses aqui, eu andava pra todo canto e pegava todos os metros possíveis. Na época eu até falava que amava pegar metrô - isso mudou logo depois de presenciar gente doida gritando pra mim no vagão sem motivo algum. Eu chegava a fazer 16km por dia e eu sentia que eu fazia parte da história, eu estava vivendo a história. Não consigo explicar o sentimento delicioso de ter tempo pra observar a cidade enquanto eu ia pro trabalho, principalmente porque eu não tinha medo de ser assaltada. Eu juro que nao sofro de síndrome de viralata, longe de mim. Poderia passar um dia listando todas as coisas que o Brasil tem de melhor que a França mas preguiça
Nas minhas andanças recentes, comecei a perceber um detalhe minúsculo, às vezes escondido, apagado pelo tempo, mas só quem tem um olhar atento consegue perceber. Nos prédios do período haussmanian e alguns do período art nouveau, os arquitetos deixaram sua petite marque no prédio. Normalmente nas fachadas do lado direito ou esquerdo das portas, eles assinavam seus nomes e colocavam o ano da construção do prédio. Às vezes também colocavam a empresa pela qual trabalhavam e até mesmo os engenheiros participavam dessa assinatura.
Não lembro quando eu comecei a prestar atenção, só percebi que do nada eu estava obcecada olhando pra cima todo dia que eu andava na rua ou dentro do ônibus indo pro trabalho. Comecei a brincar com as vozes da minha cabeça e tentar achar o prédio mais antigo, o mesmo arquiteto em lugares diferentes de Paris, os modelos de esculturas, os estilos. Tudo é protegido, a história preservada (quem é brasileiro sabe do trauma do que é não ter a história protegida). Fiquei obcecada.
Quem é fã de Agnès Varda deve com certeza ter já visto o curta dela que se chama Les Dites Cariatides de 1984. Ela passa os 13 minutos mostrando a poesia das cariátides pelos prédios de Paris. E o que diabos são cariátides1? São colunas/estátuas em forma de mulher.
Foi uma das primeiras coisas que prestei atenção quando cheguei, graças à Varda. Me senti fazendo parte de um cenário, de um sonho, eu me senti fazendo parte da cidade, uma verdadeira flâneuse2. Paris me pertencia, as cariátides me pertenciam porque eu tinha uma ligação emocional com elas. Por causa de Varda eu tive meu olhar atento para os prédios daqui, eu os olho esperando uma mini surpresa, uma mini parte da história contada, qualquer coisa que torne palpável a lendária Paris.
Daí encontrei essas assinaturas que também contam uma parte da história da cidade. Fui procurar o porque e achei tão belo o significado que decidi compartilhar nessa newsletter. O arquiteto é reconhecido como um artista e a partir de 1850, as fachadas dos imóveis começam a ser assinadas pois os prédios sao obras de arte. Achei tão poética essa definição porque como nao enxergar esses esquecidos arquitetos como artistas?
São nomes de pessoas que não existem há mais de um século, com histórias que evaporaram no tempo e se não fosse essa marquinha num pedaço de concreto, seus nomes nunca mais seriam pronunciados por nenhuma boca (Eu sou a rainha do exagero porque é claro que se deve falar sobre todos nas escolas de arquitetura). Talvez ainda ninguém pronuncie seus nomes ou mesmo pense neles, afinal, não é todo mundo que presta atenção num detalhe tão pequeno quando há tantas coisas mais bonitas a prestar atenção, como as tais ditas cariátides.
Pra mim esses arquitetos se tornaram viajantes no tempo, passaram por tragédias, guerras, revoluções e continuam ali dizendo “ei, eu existi num breve espaço do tempo e continuo aqui”. Será que eles imaginavam que iam durar tanto tempo? Será que seus descendentes algum dia passaram na frente de um prédio e sentiram alguma coisa lendo essas inscrições?
Com tantas transformações que vivemos, sinto que essas assinaturas são pequenos lembretes de que tudo o que nós fazemos pode resistir ao tempo. Resistem a todas as passagens do tempo e preservadas por contar uma história, um momento. Podemos deixar nossa marca nesse mundo e talvez, daqui a 100 anos - se ainda existir mundo e Paris - alguém vai ler nosso nome pela primeira vez em anos e pensar “caramba, essa pessoa existiu”. Gosto de imaginar a nossa existência se tornando palpável através do tempo, transpondo-se através de tudo.
Ao refletir tudo isso, eu olho pra cidade de onde vim e que também conta tanta história por meio dos seus prédios, sua narrativa de construção e todos os eventos que marcaram a nossa identidade, tanto como brasilienses como brasileiros e eu não sinto essa paixão incandescente por sua história inscrita nos prédios e no seu cotidiano.
Eu nunca gostei de morar em Brasília - talvez pelo fato dela ser jovem (me dei conta de que quando nasci, ela só tinha 34 anos!) e sua história ainda estar em um desenvolvimento caotico ou pelo fato de ser tudo tão organizado, tão planejado, tão… quadrado ou por simplesmente ser a minha cidade natal que eu desejava a todo custo fugir e reescrever minha própria história?
Aposto nas três possibilidades juntas e ainda completo que quando vim pra Paris, eu senti que eu poderia descobrir quem eu era, eu podia flanar, existir. Eu poderia me reescrever porque ninguém me conhecia, Paris não me conhecia, eu não conhecia Paris, nao conhecia nada
a não ser as tais cariátides de Agnès Varda.
Pra quem é curioso que nem eu, tem esse site que organizou todos os arquitetos que participaram da construção de Paris de 1400 à 2022. Achei top: Index Paris
Pra quem não conhece ainda o curta mencionado da Agnès Varda, voici um link pra assistir: Les Dites Cariatides
Ótima leitura também sobre Agnès Varda e da flânerie existente na sua obra: Wandering in the Presence of Women
Indico a leitura do livro Flâneuse da escritora Lauren Elkin
A definição de cariátide, segundo o Oxford languages (com a ajuda do nosso ami Google): suporte arquitetônico, originário da Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma estátua feminina e cuja função era sustentar um entablamento.
Flâneuse/flâneur ou no bom português: pessoa que anda sem rumo, vagueia pelas ruas (pela vida). Pretendo retomar esse termo diversas vezes aqui porque eu sinto que representa demais a minha vida ultimamente (não é a toa que o nome daqui se chama… flanando)