Tove Ditlevsen, infância perdida e registros da vida
A razão pela qual eu estou nesse momento aqui, escrevendo uma newsletter e me mostrando completamente vulnerável depois de sei lá 8 anos sem escrever, é que estou lendo a Copenhagen Trilogy da Tove Ditlevsen. O que uma coisa tem a ver com a outra? Te explico nas próximas linhas, ou pelo menos vou tentar colocar em palavras o que venho tentando entender desde o começo da leitura desse livro.
Já começo compartilhando que essa trilogia não tem um enredo hiper elaborado, não contém uma história mirabolante nem nada disso. É uma trilogia da vida da Ditlevsen dividida em Infância, Juventude e Dependência. Em muitas partes me lembra bastante a escrita da Elena Ferrante por conta dessa necessidade de entrar nas profundezas da experiencia da mulher. Não vou entrar nos detalhes das questões de gênero que podem ser propostas e analisadas, só quero falar que de alguma forma, Ditlevsen me fez entrar em contato com a minha infância.
Não brinco, acho que eu não olhava pra minha infância da forma que tenho olhado nessas últimas semanas desde quando comecei a fazer terapia, o que deve fazer uns 10 anos já. Tove Ditlevsen enfatiza muito na primeira parte da trilogia, Infância, a importância da sua trajetória infantil e de como todo esse percurso desencadeou suas mudanças físicas e emocionais na adolescência e na vida adulta. Ela olha para essa época de uma forma muito gentil e madura, trazendo o sentimento de que mesmo não tendo afeto da mãe, mesmo vivendo na pobreza e tendo experiências frustantes, ela teve dificuldade de se desapegar dessa etapa. Eu fiquei me perguntando… será que se eu olhar pra minha infância agora, no alto dos meus 28 anos, eu vou conseguir enxergar essa época também com um olhar mais gentil e maduro?
Não vou contar aqui toda a minha infância - até porque, nesse movimento de esmiuçar o meu passado, percebi que eu não lembro de quase nada dessa época, pelo menos não da mesma forma que Ditlevsen ou outros escritores que se lançaram nessa aventura de olhar pra tras. Talvez eu conte alguns momentos - talvez até o únicos que eu me lembre -, na tentativa de entender o que é me aconteceu (óbvio que eu sei) pra eu ter simplesmente bloqueado todas as minhas memórias infantis, as mais simples, puras e cotidianas. Eu sei que é normal não lembrar de uma parte da infância, mas no meu caso é quase um branco total até os meus 12 anos.
Nesse baú da memória tenho apenas alguns flashes, características, mínimos detalhes ou até só uma leve ideia da rotina que eu levava. E tudo, tudo mesmo, me deixa uma sensação de desolação e tristeza. É como se a parte mais importante da minha vida, essa que provavelmente é a base do que eu sou hoje, nao tivesse existido.
Como é que eu não lembro da sensação da minha mãe chegando em casa do trabalho? Por que eu lembro somente dela deitada no sofá, deprimida e chorosa, depois que meu pai foi embora de casa? Por que eu não lembro da sensação de ir na casa da minha vó no interior da Bahia? Como é que eu não lembro da sensação de ter meu primeiro cachorro? Por que eu lembro somente do dia que meu cachorro Pluto morreu e eu não pude dar adeus? Por que são apenas as lembranças ruins e traumatizantes que criaram raízes na minha vida e não as lembranças leves, boas e que poderiam trazer de alguma forma um alívio nos momentos difíceis da vida adulta?
Na angústia de sentir que uma parte do meu eu importante tinha se apagado, comecei a procurar desesperadamente qualquer coisa. O que consigo lembrar fielmente? Lembro que na esquina da rua onde cresci, tinha uma vizinha uns 4 anos mais velha com uma casa de andar, um enorme quintal e o interior da casa era um mistério a ser imaginado por mim e minha outra vizinha, Paloma. Lembro que um dia essa vizinha mais velha me deu sua casa de boneca antiga e eu me senti especial.
Lembro que eu pegava o mp3 do meu irmão e eu ia pro meio do quintal de cimento e ficava escutando as únicas 3 músicas que eu gostava em looping. Lembro bem quais eram: Side - Travis, Always - Blink 182 e I’ll be Missing You - Puff Daddy. E eu ficava lá, escutando e rodando sozinha no meu mundinho solitário. Eu nunca tinha olhado pra essa memória como agora e eu sinto que é uma lembrança tão simples, tão feliz.
No fim, as poucas memórias que vieram me mostraram que ha uma beleza, uma particularidade, uma identidade - desconhecidas pra mim. Continuo esmiuçando o meu passado infantil e ainda fico triste por não conseguir nem por fotos me conectar com a Livia criança. São essas lembranças minúsculas que ainda me ligam a esse passado nebuloso, meio que não existente, dizendo que essa mini pessoa existiu. So que eu não a reconheço.
Até ler Ditlevsen, eu nunca tinha tentado descobrir quem eu fui nessa época. Na minha cabeça apenas a parte da minha adolescência tinha sido essencial pro meu desenvolvimento porque eu tenho lembranças palpáveis e que fazem sentido. Mas a infância… quem eu fui? O que eu sentia? Do que eu tinha medo? O que me fazia feliz?
Essas questões talvez nunca sejam respondidas mas pelo menos, agora eu consigo olhar com mais gentileza pra esse passado estranho e dizer que quando eu escutava música no mp3 do meu irmão, rodando sozinha no quintal, eu era feliz e isso era tudo que precisava fazer sentido.
Todo esse bla bla bla que eu trouxe aqui era só pra explicar que Tove Ditlevsen me abriu a porteira e me fez olhar pra importância dessa época. Não só isso. Como ela era poeta também, eu fiquei tentada demais em escrever, pintar, expressar sobre tudo que me atinge e que permeia essa vida, seja aqui na França ou no Brasil. Me fez lembrar que na minha adolescência, registrar a minha vida por meio das palavras era vital pra minha sobrevivência. Lembro até que eu escrevia letras de músicas, mini poesias, fazia mini desenhos, todo tipo de registro de quem eu era e quem eu queria ser. Tudo era palpável e acessível. Eu existia.
E adivinhem?
Chegando em algum momento da minha vida adulta, eu apaguei, rasguei, joguei fora tudo. Novamente eu me encontro tentando achar essa outra Livia, a adolescente. Não tenho nada mais que me ligue a minha trajetória tortuosa da adolescência. Não lembro das sensações, dos medos, das vontades, de nada. Essa Livia também, eu a perdi.
É por isso que estou aqui me apoderando das palavras perdidas da minha vida, tentando registrar qualquer sentimento que me apareça, seja no meu diário íntimo, poesia, pintura ou num texto bobo como nessa newsletter. Só sei que eu me recuso a me perder novamente e daqui a 10 anos me perguntar quem eu era e onde fui parar.
P.s: mesmo sendo bobo, tive a certeza de que essa newsletter era uma ideia boa pra mim porque minha amiga Rayanne, apoiadora número 1, me mandou o episódio Linha do tempo do podcast Rádio Novelo, no qual uma das histórias contadas tem exatamente um trecho explicando sobre a amnésia infantil e de como um pai, querendo preservar esse período precioso dos filhos, começou a registrar todos os dias a vida de todos eles - preservando assim delicadamente cada momento bobo mas que dao sentido a existência deles.
nem sei ainda como vai funcionar esse espaço aqui, acho que vou vendo a medida que vous escrevendo ou o que me der vontade de compartilhar… até porque eu nao tenho la tanta coisa interessante a mostrar - a nao ser a vida de imigrante haha